Thaís Jardim
quinta-feira, fevereiro 27, 2003
  A história de Gilded Baby (meu nome Glam Rock)
Febre. Delírio. Uma estrela dourada tatuada sobre o olho esquerdo. Um vestido dourado. Um mundo dourado. As luzes se acendem. O outro corpo suando. Ela sobe. Ela é uma estrela. O outro corpo tremendo. Ela dança. Ela é purpurina. O outro corpo murmurando coisas que ninguém entende. Party girl. Ela sorri e vai embora. O outro corpo chamando. Ela é cigana. Ela é nômade. Ela é livre. Delírio. A febre aumentando. 
terça-feira, fevereiro 25, 2003
  Faca amolada
Interfone. Telegrama. Pode subir. Campainha. Olho mágico. Estranho, esse parece o homem que estava lá embaixo quando eu cheguei. O homem que subiu comigo e que seguiu em direção ao apartamento do vizinho enquanto eu entrava em casa. Estranho. Abro uma frestinha da porta. Estranho. Ele não está com a roupa do correio. Estranho. Ele está carregando uma pilha de envelopes comuns. Isso não é telegrama. Preciso fechar a porta. Preciso, mas não consigo. Ele é mais rápido, ele é mais forte. Tenho 10 anos e estou sozinha em casa. Meu pai, morando no Rio de Janeiro. Minha mãe, trabalhando pra garantir o pão nosso. Meu irmão, na escola. A empregada, trabalhando em outro apartamento do mesmo prédio. E agora, aquele homem está dentro do apartamento e me mostra a faca que traz na cintura. É só fazer o que eu mandar e nada vai te acontecer. O primeiro pensamento foi o almoço. Eu tinha prometido adiantar as coisas, pôr a massa no fogo. Essa situação inesperada ia atrasar tudo, bagunçar a nossa rotina. O homem me empurra até o quarto dos meus pais e me diz para ficar sentada na cama de casal. Onde está o dinheiro? Não sei. Ele começa a revirar o armário, as gavetas da cômoda, tudo. Junta algumas coisas que encontra e logo desiste de roubar. Vamos até o banheiro. Não vou te machucar. Me obedece. E eu pensando que a minha mãe não ia ficar nem um pouco feliz com a bagunça que aquele homem acabara de fazer no quarto dela. Minha mãe, sempre organizada. Minha mãe, sempre reclamando da minha bagunça. Agora entra na banheira. Isso. Tira a blusa. Tirar a blusa? Eu lembrei que ainda estava com a roupa da ginástica por baixo e que isso daria muito trabalho. Vamos, tira a blusa, eu estou mandando. Comecei a tirar a blusa... Telefone. Interfone. Tudo tocando ao mesmo tempo. Eu grito: É o meu irmão! Pela primeira vez, senti medo. Medo por quem estivesse chegando em casa. O homem ameaçando. Vou te trancar no banheiro, mas vou ficar na tua casa. Se eu ouvir um grito, volto aqui e te mato. E depois, só o silêncio. O telefone desistiu de tocar. O interfone desistiu de tocar. Um silêncio horrível. Estendi a minha mão pela janela do banheiro e tentei acenar para um vizinho. Ninguém notou. Fiquei lá... minutos, horas. Até que ouvi uma voz conhecida: Thaís, por que tu deixaste a porta aberta? Por que tu estás trancada no banheiro? Era a empregada. Tinha subido pra ver se estava tudo em ordem. Não estava. O almoço ia atrasar. 
sexta-feira, fevereiro 21, 2003
  Nas noites, uma busca sem fim.
- Sério... Resoluções de ano novo: vou voltar pra academia, vou parar de beber e vou esquecer que existem homens no planeta. De hoje em diante, só vou pensar em mim e na minha carreira.

Minha amiga lança um olhar incrédulo.

- Sei, sei. No ano passado foram as mesmas resoluções, mas não deram em nada.

É verdade. Estou adotando um padrão previsível. Ano após ano eu repito as mesmas resoluções, só para descumprir todas e ter que repetí-las no ano seguinte. Talvez eu deva pensar em novas resoluções. De qualquer forma, essa decisão será adiada até o final do ano, pois as resoluções desse ano, iguais às do ano anterior, e de outros tantos anos anteriores, já foram tomadas.

- Bem, é bom saber que tu decidiste parar de beber. Ela faz esse comentário com aquele tom irônico de quem está enchendo a minha taça de vinho pela quarta ou quinta vez.

Exatamente há um ano, estávamos nessa mesma sala, também tomando vinho. Exatamente há um ano, ela ouvia o meu desabafo. Foram cinco anos de um namoro conturbado, cheio de idas e vindas, e finalmente nós passaríamos o Ano Novo juntos. Ele estava morando em uma cobertura em Ipanema, e sugeriu um Reveillon romântico. Eu permaneci cética. Queria acreditar, mas não conseguia mais. Um dia, abri a caixa de correspondência e além das contas e da pilha de malas-diretas, tinha uma carta. Olhei para aquele envelope como se fosse peça de museu. Reconheci a letra e abri com cautela. Dentro do envelope, apenas a passagem de ida e volta para o Rio de Janeiro. Nenhum bilhete. Nenhuma palavra.

Escritório. Mesa cheia de livros e papéis. Pareço concentrada, mas estou no Rio. Cabelo ao vento, braços abertos, da janela vejo o Corcovado. Faltam só três dias. Três dias para o Reveillon. Três dias, esse amor e uma canção. O telefone toca. A voz dele.

- Preciso te dizer uma coisa importante.

Pausa para o meu coração parar de bater. Expectativa. O ritmo da respiração dele do outro lado da linha. A minha respiração paralisada.

- Eu prefiro que tu não venhas.

Surpresa, incredulidade.

- Olha, passar o Ano Novo juntos não é um passo tão sério assim, não significa nenhum compromisso, não é nenhuma promessa de amor eterno. Era o meu único argumento, a única coisa que me ocorreu naquele momento. Medo. Ele sempre teve medo de compromissos.

Mas ele suspirou e eu continuei confusa. O chão tremeu para que eu entendesse que o prédio ia cair sem que eu tivesse qualquer chance de escapar do desastre.

- Eu tenho uma namorada.

Coloquei o telefone no gancho, já sentindo um suor frio escorrer pelo meu rosto. Depois, o mal estar. Tudo tão clichê, tudo tão sem originalidade. Corri para o banheiro e vomitei. Vomitei como nunca, vomitei até o que eu não havia comido. Vomitei como se estivesse eliminando todos os sentimentos, todos os sonhos, todos os projetos. Vomitei a falta de sensibilidade dele, que não esperou que eu chegasse em casa para dar a notícia. E finalmente, vomitei em homenagem à minha burrice, vomitei por ter acreditado, vomitei por todas as vezes em que me iludi, nesse e em outros relacionamentos, vomitei como se eu pudesse vomitar a minha capacidade de amar. Depois, completamente vazia por dentro, me olhei no espelho e me recompus, e lembrei que eu não sofro por nenhum homem, nem mesmo por ele, principalmente por ele. História antiga, de quando tive a primeira desilusão. Promessa feita a mim mesma: jamais sofrer por homem algum por mais de 48 horas. Com o tempo e o acúmulo de desilusões, esse prazo foi sendo reduzido. 24 horas, 12 horas, 8 horas, 4 horas...

Passado o momento de fraqueza, que felizmente ninguém do trabalho percebeu, voltei a ser prática e tratei de resolver o problema do Reveillon.

Noite de 31 de dezembro. Meu senso crítico ficou para trás, junto com a quinta taça de champagne. Corro até a praia. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete ondas. Esse ano vai ser bom, esse ano tem que ser bom!

Volto das areias de Santa Cataria para o apartamento da minha amiga. Um ano e eu ainda lembro de todos os detalhes. Um ano e eu sigo cometendo os mesmos erros.

Um brinde. Minha amiga levanta a taça de vinho e rodopia pela sala vazia. Ela não pensa no amanhã, não se preocupa com planos de renda fixa ou com previdência privada.

- Pra que guardar dinheiro se eu não sei nem se sobrevivo até amanhã?, é o que ela sempre pergunta.

Ela também não se estressa com as coisas do coração. Simplesmente segue os impulsos. Fica com homem, com mulher, com homens e mulheres, o que surgir e o que ela tiver vontade de fazer. Talvez um dia eu seja como ela. Por enquanto, ainda perco o sono pensando nas contas, no dia de amanhã, no futuro. Por enquanto, ainda sonho com o relacionamento ideal. A banda de um amor da adolescência cantava mais ou menos assim: “uma garota feita pra mim. Nas noites, uma busca sem fim.” Estou determinada a seguir essa minha busca sem fim. Eu não aprendo. Estou determinada a acreditar que, em algum lugar, existe um homem feito pra mim.  
quinta-feira, fevereiro 20, 2003
  Eu, pura adrenalina


Inferno, arder em chamas, paixões.
Gosto dos desesperados, dos inconformados, dos perdidos, dos diferentes.
Principalmente, gosto da vida sem medo da morte.
 
terça-feira, fevereiro 18, 2003
  Mulheres nuas amam animais
Que coisas bizarras invadem a minha caixa de mensagens. A tua também, eu imagino.
Thaís, aumente seu pênis, acabe com suas dívidas, aumente sua renda sem sair de casa, ganhe $200 por se registrar, envie esse mantra e consiga tudo o que você quer, perca peso no banho, ganhe dinheiro com pornografia, leia o tantra indiano e mude sua vida, mande essa mensagem para 20 amigos e ganhe uma viagem para a Disney, veja a Jennifer Lopez nua e o topless da Anna Kournikova. Por favor! Eu não tenho pênis, eu não tenho dívidas, eu não gosto de correntes, eu detesto filosofia barata de auto-ajuda e eu odeio ter a minha caixa postal entupida por fotos de celebridades, nuas ou não.
Um amigo escreveu um texto chamado O que as pessoas pensam de mim a julgar pelos e-mail que recebo. Boa reflexão. Pensam qualquer coisa. Ou simplesmente não pensam!
Deletar, deletar, deletar... e torcer para que ninguém recicle esse lixo virtual. 
domingo, fevereiro 16, 2003
  We were young and full of life
and non of us prepared do die

Escuto ABBA e esse trecho da música não sai da minha cabeça.
Nós éramos jovens e cheios de vida, e nenhum de nós estava preparado para morrer.
Será que existe isso? Será que a gente, algum dia, se sente preparado para morrer?
Lembro da minha vó. Câncer aos 87 anos, metástase, certeza de não ter muito tempo de vida. Uma pessoa de 87 anos deve passar por todo o sofrimento e desconforto de um tratamento, sessões de quimioterapia, dias e noites e dias e noites de hospital? Sem tratamento, ela teria apenas mais alguns meses de vida. Com tratamento, como saber? Um ou dois anos mais, talvez. E se a morte estivesse à espreita de qualquer forma, com ou sem câncer, com ou sem quimioterapia? A decisão era dela. E a minha vó, que vivia reclamando da vida, não estava preparada para morrer Que o câncer venceria a batalha, todos nós sabíamos, inclusive ela. Mas em que round seria o nocaute? Ela se foi, mas passou um ano lutando bravamente.
Ontem estávamos no Baalbek, um restaurante árabe que eu e meus amigos costumamos freqüentar. O atendimento estava excepcionalmente ruim. Demoraram mais de uma hora pra trazer uma esfiha de espinafre, esqueceram da minha coca-cola light e, também, esqueceram de trazer o copo com gelo. Depois, vi que eles erraram na conta da mesa ao lado. Quando nós não conseguimos pedir uma cerveja, me irritei. Peguei o celular e liguei:
- Restaurante Baalbek
- Oi, eu estou aqui no restaurante, na mesa dos fundos, e gostaria de pedir uma cerveja.
- (risos) Tudo bem, já está indo.

O garçom chegou rindo. Eles gostaram do meu improviso. Aproveitou a ocasião para nos pedir desculpas pelo mau atendimento. Eles estavam desnorteados com a notícia de que o filho de um dos donos tinha se acidentado de carro. Ainda não sabiam muitos detalhes, mas parece que era grave. O restaurante estava praticamente vazio. Pedimos a conta. Choro. Desconsolo. O garçom voltou com a conta e a notícia: o acidente tinha sido fatal. 20 anos. Quatro amigos voltando da praia, foram desviar de um carro que estragou na pista, perderam o controle e bateram em um caminhão. Dois morreram. Éramos jovens, cheios de vida, e não estávamos preparados para morrer... Impossível não ficar triste. Saímos de lá com o estômago embrulhado e fomos direto para a festa do Ocidente. Ironicamente, uma festa revival. DJs desenterrando o melhor e o pior dos anos 80 e 90. Reviver... lembrar... Fernando Pessoa na cabeça:
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Cantamos, dançamos, nos divertimos até o amanhecer. Novo dia. Recomeçar. Viver.
 
sexta-feira, fevereiro 14, 2003
  Silêncio. A casa está vazia.
Sentada na poltrona, ela espera o telefone tocar.
O gelo estala no copo de Martini.
A faca está sobre a mesa, a lâmina afiada.
Ela confere o telefone.
Está funcionando, tem linha, nenhum problema.
Ela caminha até a janela.
Rua deserta. Silêncio.
A faca está sobre a mesa, a lâmina afiada.
Ela olha para o telefone que, insensível, continua sem tocar.
A vida não tem sentido.
Ela caminha lentamente até a mesa e pega a faca.
A lâmina afiada.
A morte não tem sentido.
Ela abre a gaveta do armário e guarda a faca.
O telefone toca. 
quarta-feira, fevereiro 12, 2003
  Meu coração vagabundo quer guardar o mundo em mim.
... era um quarto vermelho e pulsava. E durante muito tempo, aquele foi o meu abrigo.
... era um quarto vermelho e me expulsava. A nota de despejo. A letra dele tatuada em mim.
E eu, menina de rua, ainda busco albergue em outros abrigos.
 
segunda-feira, fevereiro 10, 2003
  Sinceridades
Primeira noite na casa dele. Acordamos juntos e ele foi preparar o chá. Com leite e mel pra ele e puro pra mim. Ainda não nos conhecíamos muito bem, mas eu não estava constrangida com a situação. Ao contrário, estava muito à vontade no meio da bagunça dele. Inevitável lembrar do namoro recém terminado, pensar nas inúmeras manhãs em que eu escondia as lágrimas, sozinha no quarto dele. Tudo muito organizado, muito limpo, muito branco e muito vazio. Ele fazia o café, esquentava croissans e ficava lendo The Economist na sacada. Eu ao lado, sentada no sofá, sem saber o que fazer, tentando não atrapalhar. Um dia não agüentei. Fui embora e caminhei a longa distância do apartamento dele até o meu prédio. Até hoje não sei se ele gostava da rotina ou se esperava que eu a subvertesse. O que sobrou do relacionamento foram incertezas, um grande ponto de interrogação. Com esse homem é diferente. Ele traz o chá. Não tenho pressa, sinto que é natural estar ali. Me atiro no sofá e ele canta Guns'n'Roses.
Say woman take it slow and things will be just fine
You and I'll just use a little patience
Say sugar take the time cause the lights are shining bright
You and I've got what it takes to make it.

Depois, ele me acompanha até o carro. Estou prestes a partir quando ele faz um sinal. Abro a janela.
- Eu preciso te dizer... Eu vejo outras mulheres. Tudo bem?
Sorri. Esse não é um relacionamento. É provável que nunca seja. Estou me sentindo bem. Engatei a primeira e fui pra casa.
Isso foi há mais de um ano. Hoje, nossas noites são muito diferentes das daquele outono. Nós ainda tomamos chá juntos de vez em quando, na minha casa ou na dele, e conversamos sobre as mulheres que ele vê e sobre os homens com quem eu eventualmente saio.
Um desses homens surgiu recentemente. Eu estava esperando na fila, logo atrás dele. Um casal tentou entrar na minha frente e ele defendeu o meu espaço. Perguntei se ele era carioca.
- Não, francês. Moro no Rio há sete meses.
Começamos a conversar. Mas o show também estava começando e eu e minhas amigas queríamos encontrar um lugar melhor. Ele nos acompanhou. Depois, disse que ia ao banheiro, ia procurar os amigos, e prometeu voltar. Não acreditei. Estávamos no meio de uma multidão e as chances dele voltar àquele mesmo ponto eram mínimas. Para minha surpresa, ele voltou.
- A tua mão é cheia de anéis, mas nenhum nesse dedo. Não existe um marido, um noivo, um namorado?
- Não, ninguém.
E foi assim que trocamos o primeiro beijo, logo seguido por outro e por outro.
- Eu não vou te ver amanhã, não é mesmo? É provável que a gente nunca mais se encontre, não é?
Ele olhou nos meus olhos e confirmou o que, no íntimo, eu já sabia. Objetivo, direto. Fomos pra minha casa e tivemos uma noite ótima.
Eu acho que sinceridade cai muito bem em um homem.  
sexta-feira, fevereiro 07, 2003
  Crises e Filmes
Até já virou clichê. A primeira coisa que fazemos ao encontrar com amigos e conhecidos é reclamar "desse calor senegalês que está fazendo em Porto Alegre." "Dizem que a última vez que Porto Alegre enfrentou temperaturas tão elevadas foi há 19 anos." "Passo a noite com o ar-condicionado ligado, não quero nem pensar na conta..."
Não sei se entrei em crise por causa do calor, pela minha inquietude e necessidade de mudanças, ou por outro motivo qualquer, mas nos úlimos dias não tenho tido a menor vontade de sair de casa. Eu, que gosto de sair com os amigos, de jantar fora, de ir aos bat-points, agora só ando do trabalho para a casa e da casa para o trabalho. E, claro, estou me tornando uma especialista em paciência spider.
Mas o cinema ainda é capaz de me tirar de casa. Provoque a crise até não aguentar mais... nada de filminho light, nada de comédia. Eu gosto de viver intensamente os meus sentimentos. Se estou em crise, então vou mergulhar nela, vou ao limite, vou cortar os pulsos e tomar estricnina.
No final de semana, fui ver Spider, o psicodrama dirigido por David Cronenberg e estrelado por Ralph Fiennes. "A única coisa pior do que perder a razão é encontrá-la novamente." Saí do cinema pensando nas muitas pessoas que eu conheço que têm ou tiveram depressão, síndrome do pânico, esquizofrenia. A não ser em casos extremos, de loucura evidente, acho que nós ainda negligenciamos as doenças da mente, não levamos esse assunto muito a sério. Ontem, pra completar a sessão deprima-se muito, vi Ônibus 174. Apesar de eu ter gostado de Cidade de Deus, é impossível não fazer a comparação entre esses dois filmes. Cidade de Deus é Pulp Fiction, é ficção, mesmo que esteja sendo considerado, por público e crítica, como um retrato do Brasil marginal. Em Cidade de Deus, a violência é plástica. O sangue jorra como se fosse Pollock jogando tinta vermelha sobre uma tela. Ônibus 174 é a vida ao vivo, é uma pedrada de realidade na nossa cabeça. Na tela do cinema está exposto tudo o que, consciente ou inconscientemente, fazemos questão de ignorar, de anular. Saí do filme prestando atenção nos pequenos engraxates, vendedores de rosa, pedintes de sinaleira... Qual o futuro desses meninos? Qual o futuro do Brasil?
Diante disso, a minha crise típica de mulher-mimada-que-não-sabe-exatamente-o-que-quer-da-vida perde um pouco o sentido, fica reduzida a pó. Mas como os sentimentos não são obrigados a seguir a razão, continuo mergulhada nessa crise medíocre.

 
quarta-feira, fevereiro 05, 2003
  Desculpas
Barry Schlenker, professor de psicologia da Universidade da Flórida, define o pedido de desculpas como tentativas das pessoas de se eximir ou diminuir sua parcela de responsabilidade (ou irresponsabilidade), imprudência, erros, inadequação, estupidez ou atos prejudiciais que elas cometeram.

- Desculpa, mas eu acho que não vai dar certo.
- Como assim? Esse relacionamento é perfeito!
- Desculpa, mas eu acho mesmo que o melhor é parar por aqui.
- Parar por aqui?
- Olha, desculpa, mas eu acho melhor a gente não se encontrar mais, entende?
- Não, eu não estou entendendo. Está tudo tão bem entre nós! Tem outra pessoa?
- Não, não está nada bem entre nós e não tem outra pessoa. Desculpa, mas eu simplesmente não te amo.
 
segunda-feira, fevereiro 03, 2003
  Imagens do Fórum Social Mundial
Pôr do Sol em Porto Alegre
Essa são algumas das fotos tiradas pelo Haytham Shalabi, correspondente da TV Dubai, no dia em que uma multidão se reuniu para ver o pôr-do-sol. Eu já escrevi sobre esse episódio em um post anterior e não vou repetir toda a história. Quem não leu ou não lembra pode clicar aqui. As cinco pessoas que aparecem na terceira foto são Mariana, Carina, Aicha, Thaís (euzinha) e Anderson.








 
sábado, fevereiro 01, 2003
  Parágrafos
01 de janeiro. Depois do jantar de ano novo com a família, peguei o carro e saí sem rumo pela cidade. Há muito tempo eu não passava o Ano Novo em Porto Alegre e tudo parece muito sem graça. Mas como esse foi o primeiro Ano Novo depois da separação dos meus pais, fiquei me sentindo na obrigação de não abandonar o barco, de manter unidos os fragmentos de família que ainda restam. A família... sempre tão importante para mim. Nunca pensei que caminharia sobre os escombros do que um dia eu chamei de lar. World Trade Center. Em segundos, meu mundo desaba. Em segundos, somos as ruínas de nós.

Já passa da meia-noite. Ouço foguetes, vejo as luzes nas janelas dos edifícios. As pessoas estão felizes. Mas que felicidade é essa? Poderia ser um dia como outro qualquer. Não é. Ser feliz no Ano Novo é imperativo. E se isso não acontece, parece que o ano todo será uma merda. Quem mandou não usar a calcinha amarela, não comer as 12 uvas, não pular com o pé direito? Confusão sem mistura... acho que eu estou no momento da queda.

Ossip, meu bar preferido na Cidade Baixa. Por incrível que pareça, o bar não está vazio. Pelo contrário. Evito olhar para as outras mesas porque prefiro não saber que tipo de gente passa o Ano Novo ali. Realmente, estou perdida em minha consciência crítica. Eu não sou nada, eu sei que não sou nada e isso só me atormenta. Como fui ficar tão só? Onde estão os meus amigos, tantos amigos? Por que estou nessa mesa de bar vazia, tomando vinho, lendo uma revista e esperando o celular tocar (na verdade, torcendo para que ele toque)? Minha vida é mesmo uma comédia estúpida e um melodrama barato.

O cara que estava no balcão do bar puxa uma cadeira e já vai sentando. Pergunta se os amigos dele podem sentar conosco e eu concordo. Eu o conheço da noite mesmo. Acho que o nome dele é Fernando, mas não sei ao certo. Como foi mesmo que eu e o Fernando nos conhecemos? Acho que algum amigo nos apresentou, mas também não tenho certeza disso.

- Tá sozinha? A gente pode sentar contigo? Esses são o Maninho e o Marcos, por falar nisso.

Tá sozinha... Que pergunta! É óbvio que eu estou sozinha e também é óbvio que ele já percebeu isso. Se fosse outro dia qualquer, eu não teria hesitado em responder com algum comentário irônico. Mas afinal, hoje é Ano Novo, eu realmente estou sozinha e já perdi a esperança de ouvir o celular tocar. Além disso, gostei do Marcos. Alto, cabelo castanho comprido preso por uma faixa preta, tatuagem no braço, calça jeans rasgada e, claro, aquele olhar de desamparo que contradiz todo o visual. Eu sempre gostei desse tipo de homem, com olhar de desamparo.

Cazuza grita: “exagerado, jogado aos seus pés, eu sou mesmo exagerado. Adoro um amor inventado.” Amor inventado. Marcos, será que foi o acaso que te colocou no meu caminho nessa madrugada de 01 de janeiro? Eu bem que estou precisando de um novo amor para apagar todos aqueles amores frustrados do passado, todas aquelas histórias sem futuro que eu não consigo terminar. Como é difícil pôr um ponto final. Vírgulas, reticências, até ponto e vírgula são mais simples do que o ponto final. O ponto final é drástico, é definitivo. Talvez o Marcos me ensine a usar o ponto final. Talvez ele seja o início de um novo parágrafo na minha vida. Mas o que é mesmo que ele está dizendo? Ah... Sim, eu também adoro os filmes do Almodóvar.

A turma aumentou. Agora, estamos no Gasômetro, dividindo uma garrafa de champagne e um baseado. Noite linda, céu estrelado, e o meu novo parágrafo está conversando com uma garota de cabelo roxo e piercing no nariz. Olho o Rio Guaíba. Pego o baseado, sinto como se todo o meu corpo se transformasse em fumaça. Sou etérea e flutuo. Ou melhor, acho que não existo. Deito na grama e fico olhando o rio, as estrelas, a lua. Sou tomada por Fernando Pessoa.

Vem, Noite antiqüíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito


Sol? Luz? Aonde estou? Abro os olhos... uma mesa, uma cadeira, uma garrafa de champagne vazia. Não reconheço nada. Não lembro de nada. Sinto um toque que percorre a minha barriga e segue em direção aos meus seios. Estou semi-nua, na cama de algum estranho. Fecho os olhos porque tenho medo de ver, tenho medo de lembrar.

- Hola, mi amor!

Hola, mi amor? Abro o olho. Mas quem é esse homem de barba, que parece um Che Guevara? Começo a escanear as minhas lembranças até que uma imagem vaga, quase desbotada, começa a surgir. O chileno... sim, tinha um chileno ao meu lado, no Gasômetro. Qual o nome dele? Nome? Nome? Nada... talvez ele nem tenha me dito. Talvez eu nunca tenha perguntado. Estou no apart-hotel onde ele está hospedado. Ele me oferece café, pergunta se eu quero tomar banho e me informa que a gente não chegou a fazer nada porque eu simplesmente colapsei. Difícil esconder o meu alívio. Não quero café, não quero banho, não quero nem saber o nome dele! Vou embora sem olhar para trás. Não, esse não é um parágrafo novo. Nem todos os anos começam com parágrafos novos. Que pena!
 
  Distância
Um oceano, um outro continente. As pessoas não se afastam por causa disso. Um trem indo de Halle para Mannheim. Na tela do laptop, Porto Alegre e seu calor infernal de quase 40 graus estão à distância de um clique. Pela janela do trem, só o inverno, a paisagem fria da Alemanha. Falta mais de meia-hora para ele chegar em casa. Porto Alegre está ali em frente. Ele sorri. Não existem distâncias. 
TEXTO DA SEMANA
Um texto, uma poesia, a letra de uma música. Os outros me marcam com palavras. Palavras registradas. Aqui.

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