Thaís Jardim
sábado, março 29, 2003
  Quebrem todos os espelhos,
porque eu não quero mais me ver.
Quebrem todos os espelhos,
para eu tentar me esquecer.

 
  Da série Guardanapos
A vantagem de carregar muitos papéis é que naqueles momentos de solidão de bar, eu sempre posso pedir uma taça de vinho, baixar a cabeça, mergulhar em mim e escrever.

O jazz
O burburinho das conversas ao redor
A mesa
As cadeiras de madeira vazias ao redor
Um gole de vinho ruim
A boca amarga
Solidão.
***
O olhar estava perdido.
Não, não era o olhar que estava perdido.
Era o pensamento que vagava para além das paredes daquele bar.
***
Marcaram às nove e meia e ele não estava lá.
Ele adora me fazer esperar, ela pensa.
E resignada, espera em vão.
Marcaram às nove e meia e ele não apareceu.
Ele adora me torturar, ela pensa.
E resignada, volta sozinha para casa.

Especialmente para o Tele, escritor maravilhoso (mas desblogado) e grande colecionador de guardanapos. 
quinta-feira, março 27, 2003
  Ssssshhhh
Andando no corredor da morte,
todos podem me ouvir chorar.
Eu sofro publicamente.
Afundando nas águas que um dia levaram Virgínia,
eu lavo minha alma.
Eu calo publicamente.
Mergulhando no abismo do que desconheço em mim,
eu encontro minhas palavras.
Eu morro publicamente.
E quando todos esperam pelo último suspiro,
sou salva pelo teu silêncio.
O silêncio do abismo.



Dedicado a Roland Barthes e a todos que, como eu, insistem em juntar os fragmentos daquele discurso amoroso. 
domingo, março 23, 2003
 

Guerra. Bombas caindo sobre o Iraq, sirenes, tiros, aviões de guerra, soldados, e muitos mortos, e muita destruição. Guerra. Imagens do triunfo da coalizão, dos iraquianos se rendendo. Imagens de soldados americanos mortos e capturados. Imagens de uma criança iraquiana chorando no hospital. Guerra. Saddam Hussein aparece com seu uniforme de general. Bush aparece sendo maquiado e penteado. Guerra. O Ocidente não entende o Oriente Médio. "É que Narciso acha feio o que não é espelho". Guerra. Para nós, apenas manchetes. Iraq teria derrubado cinco aviões. TV mostra prisioneiros do Iraq. Sabrina, do BBB3, vira repórter. Chuva deve continuar no Rio de Janeiro. Tropa abre fogo. Madonna é destaque no "Framboesa". Rubinho é 2o. na Malásia. Corinthians é campeão. Baterias antiaéreas respondem a ataques da coalizão contra Bagdá. Jean está no paredão. Aperta cerco a Saddam Hussein. A guerra de Bush contra todos. Para nós, a banalização. Longe das bombas e dos mísseis, a guerra mais parece um jogo virtual. Televisão ligada, a guerra é um reality show. Noite do Oscar, brilho, glamour e alguns protestos. A guerra parece uma produção hollywoodiana. Guerra. Até quando?

Atenção: As imagens desse post, copiadas dos sites do Terra e da Al Jazeera, são fortes, são chocantes, são tristes, são feias, são trágicas. Elas são assim porque assim é a guerra. A guerra não é um brinquedo. A guerra não é banal.





 
  Vazio



Três horas da manhã. Ela se debruça sobre o parapeito do bar flutuante e olha para a chaminé da Usina do Gasômetro. Lentamente, seu olhar se desvia para as luzes do outro lado do rio. A noite está clara. O DJ toca um trance. As pessoas estão em transe. São três horas da manhã e ela se distrai olhando as águas tranqüilas do rio. Calmas e traiçoeiras, pensa. Os pés estão doendo, o corpo está doendo. Se quiser continuar na festa, é melhor tomar mais uma dose de whisky com energético. Mas as águas do rio estão excepcionalmente paradas. Paradas. Ela se despede dos amigos. Sozinha, cruza a praia que a separa do carro. A noite está estranhamente quieta. São três horas da manhã e ela dirige pelas ruas desertas de Porto Alegre. Solidão, deserto, silêncio. É dentro dela que reside um infinito vazio. 
quarta-feira, março 19, 2003
  Jogo
Nesse jogo do amor, não tenho papel definido. Sou, ao mesmo tempo, vítima e algoz. Desejo quem me despreza. Desprezo quem me deseja. Drummond. João que amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém.
Nesse jogo do amor, não tenho papel definido. Sou, ao mesmo tempo, vítima e algoz. Às vezes, amo duas ou mais pessoas. Simultaneamente e com a mesma intensidade. João Gilberto sussura que já se utilizou de toda escala e no final não sobrou nada, não deu em nada. Fique numa nota só, ele insiste. Fique numa nota só ecoa em mim. Mas não sou capaz de escolher. E eu perco, eu sofro, eu faço sofrer.
Nesse jogo do amor, não tenho papel definido. Sou, ao mesmo tempo, vítima e algoz. Meu coração é oil on canvas. Van Gogh pinta uma noite estrelada. Estou sozinha em uma noite estrelada. Meu coração não bate por ninguém. Meu coração só bate para me manter viva.
Nesse jogo do amor, não tenho papel definido. Sou minha própria vítima. Sou meu próprio algoz.

 
domingo, março 16, 2003
  "Quem não torceu contra a Lucinha Lins (Purpurina) no Festival dos Festivais?", é a pergunta de um teste que quer provar que nós, da geração 80, ficamos velhos. Nós, da geração 80, já podemos viver de nostalgia. Sim, nós jogamos Atari e Odissey, nós vimos As Panteras e A Poderosa Ísis, nós usamos leg's e tênis Bamba. E, sim, quase toda a geração 80 acompanhou os festivais MPB Shell e torceu pela vitória do Guilherme Arantes e seu Planeta Água. Eu não. Eu torci por Purpurina. Eu acompanhei os bastidores dessa história. Sei como a música foi composta, sei como ela foi parar no Festival, sei como foi inesperada a vitória. E como eu admirei a coragem da Lucinha, que subiu ao palco para enfrentar um estádio enfurecido! Quando as vais começaram, ela poderia ter ido embora. Quando as primeiras ventarolas foram atiradas em sua direção, ela poderia ter deixado o palco. Mas ela cantou. Desafinou, é verdade. Ela não ouvia os músicos, não tinha retorno. No centro do palco, só o que se ouvia era o barulho ensurdecedor das vaias. No centro do palco, só o que se via era uma chuva de ventarolas. Com sua pele clara e seu vestidinho de lantejoulas vermelhas, Lucinha deve ter se sentido a mulher do atirador de facas. E como a mulher do atirador de facas, ela não se intimidou. A ribalta estava iluminada e Lucinha Lins era pura Purpurina.



Lucinha Lins - "Foi uma catarse, as pessoas enlouqueceram. No dia seguinte, eu tinha manchas pelo corpo todo porque o público me atirava aqueles abanadores e, no final das contas, parecia que eu tinha sido desenhada com caneta azul. Quando vejo esse teipe é constrangedor, minha cara aparece toda retorcida. (...) Tenho paixão por aquela música, mas admito que foi uma zebra."

Purpurina
Jerônimo Jardim
Intérprete: Lucinha Lins
Música vencedora do Festival MPB Shell 81.

Se você pensa que vai me seduzir
Se você pensa que vai me arrepiar
Pode ser, mas eu sou feito purpurina
Se uma luz não ilumina
Não há jeito de brilhar

Se você só chega por chegar
Nem uma lanterna no olhar
Nosso show não pode acontecer
Sem o palco se acender
Eu não vou representar

Se você pensa que vai me seduzir
Se você pensa que vai me arrepiar
Pode ser, pois eu sou feito bailarina
Se a ribalta se ilumina
Fico roxa pra dançar.

Post em homenagem aos protagonistas dessa história real e dedicado ao Sílvio, que me pediu a letra de Purpurina por não tê-la encontrado na Rede. 
quinta-feira, março 13, 2003
  Cruzei mil vezes a Ipiranga e a Avenida São João. Achei que assim, entenderia São Paulo. Achei que assim, seria conquistada, arrebatada, tomada por uma súbita paixão por essa cidade de ruídos e concretos. Nada além de muita dor de cabeça. Então, fui seguindo, sem rumo, pelas ruas do centro. No caminho, "as nossas coelhinhas nuas são mais coelhinhas nuas do que as outras coelhinhas nuas", "aleluia irmãos, porque somos todos filhos do mesmo pai" e uma caixa de som espalhando que aquele é um "cara carente". Um parque, outro parque. Observar os movimentos dessa cidade sentada em um banco qualquer é tarefa quase impossível. Quando finalmente encontrei um lugar para sentar, percebi que apenas pobres e desocupados ocupam os poucos bancos de praça. E sempre observados por olhares atentos de policiais e seguranças privados. Mesmo assim, sentei. Também sou um pouco desocupada nos dias dessa cidade. E depois, do céu cinza despencou um temporal. Enquanto os paulistas se abrigavam sob toldos e marquises, eu continuei caminhando pela chuva. Experiências. Descobri que em um bairro com tantas casas de espetáculo para o público adulto, uma mulher cujos trajes estão totalmente ensopados só pode ser confundida com uma prostituta. E como o paulista é criativo... Recebi as mais diversas propostas! Então, veio a vida noturna de Vila Madalena, e todas as opções de teatro, e as exposições, e os centros culturais. E quando eu menos esperava, São Paulo me conquistou. Sem paixão, sem arrebatamento. Me conquistou da forma mais simples. Simplesmente, me sinto em casa. 
quarta-feira, março 12, 2003
  São Paulo. Cidade estranha. Mas estou aqui... gostando de estar aqui e querendo estar em casa. Não faz sentido? Tudo bem... Talvez as coisas não tenham mesmo que fazer sentido. Nós é que insistimos nessa busca por sentido para que a vida se torne mais simples, menos indigesta, menos incompreensível. 
domingo, março 09, 2003
  Estranho
É estranho acordar
e ir para o trabalho
e ter uma vida normal.
É estranha essa rotina
de repetir tudo isso
no dia seguinte,
e no outro, e no outro.
É estranho me olhar no espelho
ver o mesmo rosto
e o mesmo corpo
e ser sempre a mesma pessoa.
É estranha essa rotina
de ser apenas isso
no dia seguinte,
e no outro, e no outro.
É estranho ser eu.
É estranho ser comum.
Simplesmente comum.

Escrito em homenagem ao site O Estranho, do Doggy.
 
quarta-feira, março 05, 2003
  080/98
Adilson não consegue conter as lágrimas. Ele olha para o carro, o velho Passat vermelho, com um ar de resignação. A carteira de motorista vencida jogada sobre a mesa. A primeira habilitação foi há mais de 20 anos. E em todos esses anos, nenhum acidente de trânsito. Ele entra no ônibus e sabe que seu braço atrofiado atrairá todos os olhares. É como se fosse um imã. As pessoas tentam desviar o olhar, mas não conseguem. As pessoas tentam disfarçar, mas em seus rostos está estampado um misto de pena e de constrangimento. Poltrona reservada para deficientes, idosos e gestantes. Gestantes. Mesmo tendo sido testada somente em animais, a talidomida era vendida indiscriminadamente, sem receita. Quando os hospitais e clínicas começaram a registrar diversos casos de crianças nascendo com deformidades, os cientistas e médicos constataram que ela causava atrofia de órgãos e membros. Deficiente. Ele chega ao trabalho abatido e os colegas estranham. Deficiente. O braço atrofiado não o impediu de ter uma vida normal. Uma família, um emprego, um carro velho. Um carro. Ele pega uma caneta e refaz os cálculos. Não tem jeito. Mesmo com todos os descontos e subsídios, ele jamais terá o dinheiro necessário para comprar um carro adaptado. Mais de 20 anos dirigindo, nenhum acidente. Não interessa. Sem um carro adaptado, ele não consegue renovar a carteira. Deficiente. Há muito tempo ele não se sentia assim. Adilson não consegue conter as lágrimas.

Joel não consegue conter as lágrimas. A carteira de motorista vencida jogada sobre a mesa da cozinha. A mulher lavando a louça do jantar, as crianças correndo na volta. Desde o acidente de moto, quando perdeu parte da perna esquerda, ele não se sentia assim, tão desanimado, tão impotente. O que ele vai fazer se não puder mais dirigir o táxi? Não está fácil conseguir emprego. Ele não terminou os estudos. Ele usa uma prótese em uma das pernas. Ele precisa ganhar o suficiente para sustentar a mulher e os três filhos. A carteira vencida diante dele. Revolta. Sim, é isso o que ele sente. É o táxi que garante o sustento da família. É no táxi que ele passa a maior parte do dia. E agora, uma lei diz que ele não pode mais dirigir. Deficiente só pode dirigir veículo adaptado. E veículo adaptado não pode ser usado para atividade remunerada. A vida inteira ao volante de um táxi. A carteira de motorista vencida diante dele. O que fazer? As crianças brincando na sala. Joel não consegue conter as lágrimas.

Detran-RS, Resolução 080/98
9.1.4 - Inapto - quando o motivo da reprovação para condução de veículo automotor na categoria pretendida for irreversível não havendo possibilidade de tratamento ou correção.
9.2 - No resultado poderão ser utilizadas, a critério médico, as seguintes observações: (...)
e) obrigatório o uso de veículo adaptado
10.3 - Ao condutor de veículos adaptados será vedada a atividade remunerada.


Imagens
Encontrei fotos para ilustrar esse post. Clique sobre elas para chegar às ondas virtuais que as trouxeram até aqui.

 
domingo, março 02, 2003
  Somente aquele olhar, tão vivo e tão desesperado. Somente aquele olhar, tão profundo e suplicante. E como eu gostaria de entender aquele olhar. Mas não entendo. Parece implorar para morrer, parece dizer que aquilo não é vida. E não é vida mesmo. Demente. Palavra de origem grega. A mente ganha sua carta de alforria, se desprende do corpo. Desaparecem lembranças, desaparecem imagens, desaparecem nomes, desaparecem hábitos, desaparecem conceitos. Tenho certeza que ela preferia estar demente, não saber, não ter consciência. Mas isso é a única coisa que resta. Uma mente ilhada. O corpo, uma prisão de segurança máxima. Nenhum movimento, nenhuma fala. Nada além de alguns grunhidos e daquele olhar. É como não existir. Mas ela existe, com sua consciência inútil. Por que a mente ainda funciona? Por que a mente não se perde em si? Que venha a demência, com seu olhar etéreo. Ou que venha a morte, com sua falta de olhar. Será que é isso que ela quer gritar? Não sei. Somente aquele olhar...  
TEXTO DA SEMANA
Um texto, uma poesia, a letra de uma música. Os outros me marcam com palavras. Palavras registradas. Aqui.

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