A correnteza carrega algas, troncos e um tênis velho.
Já alheia ao barco e às pessoas ao redor,
eu mergulho e também me deixo levar.
Nas águas turvas desse rio poluído, a vida me afoga.
Rio Guaíba, em foto de Valery Pugatch.
"No coração do coração,
No seu ventrículo esquerdo
Instala-se a angústia
No sentido mais estrito."
(Bento Prado Jr., Caderno Mais!, 18/05/03)
Carta
Não interessa como ou quando, mas um dia, nós nos conhecemos. Tu tinhas a cor amarelo-ocre de uma imagem esquecida do passado. Naquela época, a tua sentença já estava decretada. E eu não te entendia. Eu jamais te entendi.
Acendeste uma vela para cada santo, acreditaste em todas as religiões e em todos os milagres. E nos meus olhos descrentes, buscaste encontrar fé e esperança. Mas eu ainda não te entendia. Eu jamais te entendi.
Um dia me pediste o conforto de um amor sem compromisso. Querias só uma aventura. Querias sentir tudo o que para nós é a essência da vida. Mas eu te mandei embora porque eu não te entendia. Eu jamais te entendi.
A tua partida foi triste. Um último abraço, um último olhar. A minha decepção fundida no teu desalento. Adeus, meu amigo, adeus.
A tua partida foi triste. Nenhum abraço, nenhum olhar. O meu desespero agarrado à tua indiferença. Hoje eu te entendo, mas é inútil. Hoje já é muito tarde.
A procissão segue teu corpo. Eu permaneço imóvel. Adeus, amigo, adeus.
"A dreaded sunny day,
so I meet you at the cemetery gates."
(
Cemetery Gates, The Smiths)
Entrou no banheiro e cumprimentou as duas moças da limpeza, que conversavam na porta.
- Oi, tudo bem?
As duas retribuíram com um sorriso meio sem graça e ela logo percebeu a estupidez do cumprimento. Será que um condenado, em seus últimos minutos de vida, acha que está tudo bem com ele? Terceirização dos serviços de manutenção e limpeza, 300 funcionários expondo suas vidas despedaçadas pelos corredores da empresa, seguindo como mortos-vivos. 300 vidas sem rumo, sina dos que ganham menos e precisam mais. Ela fala dois idiomas, tem um diploma universitário e duas especializações, já viveu no exterior. A senhora com dentes podres e três filhos pra criar não terminou o ensino primário. A senhora que todos os dias chega sorrindo para lavar o chão que eles pisam e tirar o pó das mesas e dos livros, hoje, chegará quieta, e esconderá sua dor e suas lágrimas, e sairá com a cabeça baixa e um seguro-desemprego.
E ela continuará na empresa, e se esquecerá dessa senhora, assim como já esqueceu de tantas outras. Ela examinará currículos de pessoas que foram demitidas há dois anos e ainda estão buscando uma oportunidade de voltar ao mercado de trabalho. Ela olhará para aqueles currículos e pensará que aquilo não é uma instituição de caridade, e que ela precisa escolher o melhor profissional para a função. Ela acabará selecionando aquele que mais parece a sua própria imagem refletida no espelho.
Milhares de currículos, esperanças suspensas.
300 funcionários, atestado de óbito assinado.
Ela também sofre. Ela não gosta de ter a esperança e o destino dos outros em suas mãos. Ela não gosta de brincar de Deus.
Imagem de Mantruc.
"I think I know enough of hate
to say that for destruction ice
Is also great
And would suffice"
(
Fire and Ice,
Robert Frost)
Era uma noite qualquer de inverno em Porto Alegre e ele sentia o frio penetrar em sua carne, carícias de uma lâmina afiada. Seu nome? Ele nunca soube. E nem sua idade. Poderia ter 13 ou 15 anos. Talvez mais, ou talvez menos. Como saber? Na rua, os meninos não têm idade. Na rua, todos são iguais: invisíveis e sem identidade, os infelizes que ainda morrem de fome e de frio, cães sarnentos que a sociedade evita e a carrocinha sacrifica.
Ele estava encolhido em um canto escuro, próximo à entrada de um prédio. O frio e a fome não o deixavam dormir. O moleton furado e a calça de abrigo não eram agasalhos suficientes para o frio que estava fazendo, e ele não conseguia lembrar quando tinha comido alguma coisa que não fosse um pedaço de pão ou sobras de comida jogadas no lixo.
Era tarde, mas ele não saberia dizer o horário exato. Talvez já fosse meia-noite quando aquele grupo de três garotas e dois rapazes chegou. Estacionaram o carro a poucos metros dele, colocaram o som embaixo do banco e os casacos no porta-malas.
- Eu vou morrer de frio! - reclamou uma das meninas.
- Ah, eu também tô só com essa blusa fina e transparente, mas o importante é o visual. Além disso, lá dentro vai estar quente e esse bar não tem chapelaria. Imagina! Ficar segurando o casaco o tempo todo... - enquanto respondia, a mais alta das três amigas se abaixava para dar uma última olhada no espelho retrovisor e ver se a maquiagem estava em ordem, se não tinha mancha de batom no dente.
- É, vamos dançar! - gritou um dos rapazes, já puxando a motorista pela mão. Ela se certificou de que todas as portas e janelas estavam fechadas e, então, se deixou levar:
- Sim, vamos dançar e beber. Beber muito! A gente chega lá e já pede uma rodada de vodka, pra aquecer.
- E se vocês ainda estiverem com frio, podem contar com o meu calor humano. - o outro amigo sorriu e, com um olhar malicioso, correu para abraçar as garotas.
Foi assim, conversando animadamente, que passaram por ele sem o notar. Se pudesse ouvir os comentários que se seguiram, ele saberia que apesar da aparente indiferença, os amigos tinham percebido o seu corpo miúdo, acuado em um canto da calçada.
- Vocês viram aquela criança? Se ficar aí fora, vai acabar morrendo de frio!
- Ah, esquece isso. A vida seria insuportável se a gente fosse ficar com pena de cada mendigo que vê na rua. Vamos pra festa, vamos nos divertir!
- E se a gente desse uma esmola, deixasse dinheiro pra ele tomar um café, ao menos?
- Esse daí? Na certa ele tem uma mãe alcólatra, que vai pegar o dinheiro e comprar cachaça. E tu não viste a campanha na TV? É por causa das esmolas que a gente dá com a melhor das intenções que os pais seguem deixando essas crianças na rua, ao invés de mandá-las pra escola.
- É, pode ser. Vocês têm razão, vamos pra festa!
Foi bem mais tarde que chegaram os dois rapazes, um pouco mais velhos do que ele, ou talvez não. Eles abriram o carro e levaram o som. Foi tudo muito rápido. Tão rápido que ele demorou um pouco a entender o que estava acontecendo, o frio dominando o seu corpo e congelando seu pensamento.
- Aí, mano. Essa é pra ti. E boca fechada, hein!
Eles jogaram uma embalagem de iogurte na sua direção e saíram correndo, deixando o carro aberto. Ele não hesitou. Aproximou o pote do rosto e respirou fundo. Estava frio, a porta do carro aberta. Deitou no banco de trás e se entregou ao efeito da cola de sapateiro.
Acordou com berros incompreensíveis e mãos sacudindo seu corpo.
- Cadê o som, cara? Fala logo! Eu vou chamar a polícia!
Todos olhando pra ele. Olhar de acusação, olhar de gelo, tão frio quanto a noite lá fora. Ele tremeu.
A dona do carro gritando, histérica:
- E pensar que eu tive pena dele! São todos uns marginais, todos uns marginais... Tira ele do meu carro! Tira do meu carro! Que nojo, sente o fedor. Acho que esse pivete nunca tomou banho. Como é que eu vou tirar esse cheiro horrível do carro?
- Tira ele daqui! Tira ele daqui! - ela ficava repetindo, aos gritos.
Os gritos ecoando em sua cabeça.
- Esse moleque tá chapado, meu! Vamos tirar ele do carro.
Ele pensou no frio lá fora e começou a chorar. Ele não queria sair dali. Se agarrou em um dos bancos e gritou. Era um grito desesperado, era um pedido de socorro.
- Eu vou chamar a polícia e eles vão arrebentar esse pivete.
- Não, deixa assim. Tá na cara que ele não roubou nada. Vamos tirar ele do carro e pronto.
- Sai do meu carro! Sai do meu carro!
Sentiu o impacto do soco e não resistiu mais. Seu corpo foi atirado ao chão com violência. Ficou ali, inerte, com lágrimas nos olhos, sangue na boca, e um sentimento de raiva e revolta que não o abandonariam jamais.
Esse texto habita o mundo que há entre o real e o imaginário. Foi inspirado pelo comentário do Paulinho: "você me lembra Augusto dos Anjos".
VERSOS ÍNTIMOS
- Augusto dos Anjos
Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Sómente a Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!