Thaís Jardim
domingo, junho 22, 2003
  E nessa noite interna, converso com Fernando Pessoa
Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites, Fernando Pessoa está diante de mim. Eu permaneço na cama, e fico observando enquanto ele ajeita cuidadosamente os óculos. Ele desce os olhos cansados de ver o mundo e a injustiça e a sorte. E eu fecho os olhos sem dormir, fecho os olhos somente porque estou cansada. Fernando Pessoa, que também tem um supremíssimo cansaço, que ama infinitamente o finito e deseja impossivelmente o possível, pode entender o que sinto. É um cansaço de mim. Nada de verdade em mim albergo salvo uma ânsia sem princípio ou fim. São as palavras dele, não minhas. Mas ah, como servem pra mim! Então, vou sendo atropelada por palavras que voam em minha direção. Fernando Pessoa sempre escreveu pra mim. E eu não sou a musa perfeita do poeta. Sou a imperfeição, a tristeza, a dor, o desconsolo, a descrença e a desesperança. Sou a musa desesperada e louca, a alma que perdeu seu rumo.
- Teu ser é como aquela fria luz que precede a madrugada, ele me diz.
Eu choro. Choro pela madrugada fria, choro pelas mães sem leite, pelo ladrão que mata e morre, pelo cão sarnento que vaga sem rumo. Choro por toda a gente vil. E, na verdade, choro por mim e por ele. Mas ele não demonstra qualquer emoção. Continua impassível, e pra me consolar, repete frases de versos que eu conheço decor.
- Triste de quem é feliz! Firme em minha tristeza, tal vivi. Cumpri contra o Destino o meu dever.
Então, nessa fria madrugada de insônia, eu compreendo que o meu erro foi conhecer Pessoa, foi me entregar de corpo e alma. O meu erro foi reconhecer minha alma exposta, porque ninguém deve conhecer tanto de si. É verdade. Ninguém deve ter essa consciência! Ultrapassando as lentes e fixando meu olhar nos olhos dele, recito Álvaro de Campos, que nada mais é do que o próprio poeta em essência, senão em Pessoa. "Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo. Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir."
Os primeiros raios de sol invadem o quarto pelas frestas da persiana. Fernando Pessoa se inclina sobre a cama e beija minha testa.
Sinto o leve roçar gelado de seus lábios, que embora tão mortos quanto a própria morte, são paradoxalmente imortais. Lábios de palavras que percorrem os séculos e os mundos, que chegam além-mar e se refletem em mim. A noite se foi e, com ela, também se vai o poeta. Pega o chapéu, pendurado na maçaneta da porta, e segue sem olhar pra trás, sem olhar pra mim. E eu, a minha alma, terei o meu dia.

Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia!



Imagem de Vidas Lusófanas. Fragmentos de poemas a partir de Poemas/Fernando Pessoa (Nova Fronteira, 1985) e Mensagem/Fernando Pessoa (FTD, 1992). Esse post é dedicado à Mara (sempre ela!), que introduziu Fernando Pessoa ao meu universo, e ao Marcos, que me ama porque eu amo Pessoa.

 
quinta-feira, junho 19, 2003
 

"I smell like a son of a gun named extinction."
Frank Black

"It's fuckin' boring to death."
DeFalla

Tudo começou como uma brincadeira, curiosidade de adolescente. Eu tinha 14 anos e era apaixonada por ele, que me aniquilava com um olhar de indiferença. Um dia, ele caminhou decidido, atravessou a festa e parou diante de mim. - Essa festa tá muito chata, vamos cheirar um lança lá em casa? E eu fui, eu era apaixonada por ele. Depois, veio a maconha, e então as pílulas, e a cocaína. Mergulhei no mundo junkie do Bom Fim. Eu queria viver como Byron e morrer jovem.
Ele surgiu na minha vida por acaso, como todas as coisas que acontecem comigo. Era magro, muito magro. E as roupas desbotadas e rasgadas camuflavam seu jeito de anjo.
Naquela época, eu era apenas um zumbi. Meu trabalho me deixava infeliz. As festas me deixavam deprimida. As pessoas eram previsíveis e desinteressantes. E quando eu estava sufocada, e quando nada me dava prazer, eu buscava a madrugada e caminhava sozinha pelas ruas mais escuras da cidade.
Naquela época, ele tinha acabado de sair de um programa de reabilitação. Meses no campo, arando a terra, sem qualquer contato com o mundo exterior. Uma verdadeira lavagem cerebral pra esquecer... esquecer os amigos, esquecer os lugares, esquecer a heroína.
Era uma madrugada fria e eu estava chorando, sentada na porta de uma funerária. - Se te queres matar, por que não te queres matar?, eu sussurava pra lua. Ele me abraçou e ficamos olhando as estrelas (Ora, direis, ouvir estrelas. Certo perdeste o senso!). Foi o nosso silêncio cúmplice diante do universo que me salvou de mim.

When the falling stars are shooting,
And the answer'd owls are hooting,
And the silent leaves are still
In the shadow of the hill,
Shall my soul be upon thine,
With a power and with a sign.

Lord Byron



As imagens foram compostas a partir de fotos dos sites Zealotfilms, Imakeup, Zealmag e Statenews.
 
  Thaís, by Rafael Tavares
 
terça-feira, junho 17, 2003
 
Afrodite e Atena

Quando me vês Afrodite,
não te enganes.
Na verdade, tu bem sabes,
Sou eterna prisioneira de Atena.

Para Mara, mãe e amiga. Para Mara, que me fez racional e me ensinou a ter bom senso (embora eu às vezes o esqueça em casa).


Me acho racional, muito.
Me sinto um universo em desencanto, sempre.
Mas minha relação com a Cultura Racional não vai além de Tim Maia.
Não sigo seitas.
Bom senso.

Bom Senso (Tim Maia)
Já virei calçada maltratada
E na virada quase nada
Me restou a curtição
Já rodei o mundo quase imundo
No entanto num segundo esse livro veio à mão
Já senti saudade
Já fiz muita coisa errada
Já pedi ajuda
Já dormi na rua
Mas lendo atingi o bom senso
A Imunização Racional
Letra em Scream & Yell - Bom Senso, de André Pugliese
 
sábado, junho 14, 2003
  Escrevo a tua despedida como quem marca a própria carne com ferro em brasa.
As palavras me dóem tanto quanto a tua ausência.
Me abraças e me pedes para não chorar. Me dizes que o que temos é para sempre.
Ainda assim, estou perdida nessa tempestade de chuva forte e ventania dentro de mim.
Minhas palavras me fogem pra não te dizer adeus.
Tuas palavras ecoam. É para sempre.
É para sempre, eu sei.
Naufrago nos teus olhos e deixo que leves minha carcaça para o fundo do teu oceano.


Titanic

Matt, esse post é teu, como eu tinha prometido. I know it's forever. I know we are forever, mate!
Eu ia postar Coldplay, trilha sonora de muitas noites, de muitas conversas. Mas ao invés disso, resolvi postar a primeira música que cantaste pra mim. Lembras? Eu não esqueço... so, forget me not!

Patience (Guns'n'Roses)
Shed a tear 'cause I missin' you
I'm still alright to smile
Girl I think about you ev'ry day now
Was a time when I wasn't sure
But you set my mind at ease
There is no doubt
You're in my heart now
Said woman take it slow
It'll work itself out fine
All we need is just a little patience
Said sugar make it slow and
We come together fine
All we need is just a little patience
Patience
I sit here on the stairs
'Cause I'd rather be alone
If I can't have you right now I'll wait, dear
Sometimes I get so tense
But I can't speed up the time
But you know, love there's
One more thing to consider
Said woman take it slow
And thing will be just fine
You and I'll just use a little patience
Said sugar take the time
'Cause the lights are shining bright
You and I've got what it takes to make it
We won't fake it
Aah, never break it
'Cause I can't take it
...little patience, mm yeah, mm yeah,
need a little patience, yeah,
just a little patience, yeah,
some more pati..
I'll been walkin' the streets to night
just trying to get it right
it's hard to see when so many around
You know I don't like being stuck in a crowd
And the streets don't change, but baby the names
I ain't got time for this game
'Cause I need you,
yeah but I need you,
oh I need you,
woh I need you,
oo This time
 
quinta-feira, junho 12, 2003
  12 de Junho, fim da Série
Hoje,
eu não vou ouvir nossas músicas
e nem chorar o futuro abortado pelas distâncias que nos separam.
Hoje,
eu não vou percorrer as ruas em busca de um beijo vão
ou da satisfação momentânea de um prazer carnal.
Hoje,
eu não vou lamentar a cabeça rolando
dos muitos amores que a vida guilhotinou.
Hoje,
eu vou beber meu sangue
e erguer um brinde à solidão.


Basquiat

Esse post é dedicado a toda forma de amor.
Esse post é dedicado a todas as pessoas que amam.
Intensamente, incondicionalmente,
de qualquer maneira, de todas as maneiras.
... e Paulo, pra ti as minhas hemáceas e o vermelho Basquiat.

Paula e Bebeto
(Milton Nascimento e Caetano Veloso)
É vida vida que amor brincadeira, à vera
Eles amaram de qualquer maneira, à vera
Qualquer maneira de amor vale a pena
Qualquer maneira de amor vale amar
Pena que pena que coisa bonita, diga
Qual a palavra que nunca foi dita, diga
Qualquer maneira de amor vale aquela
Qualquer maneira de amor vale amar
Qualquer maneira de amor vale a pena
Qualquer maneira de amor valerá
Eles partiram por outros assuntos, muitos
Mas no meu canto estarão sempre juntos, muito
Qualquer maneira que eu cante esse canto
Qualquer maneira me vale cantar
Eles se amam de qualquer maneira, à vera
Eles se amam é prá vida inteira, à vera
Qualquer maneira de amor vale o canto
Qualquer maneira me vale cantar
Qualquer maneira de amor vale aquela
Qualquer maneira de amor valerá
Pena que pena que coisa bonita, diga
Qual a palavra que nunca foi dita, diga
Qualquer maneira de amor vale o canto
Qualquer maneira me vale cantar
Qualquer maneira de amor vale aquela
Qualquer maneira de amor valerá
 
terça-feira, junho 10, 2003
  Série 12 de Junho
... como sempre, ele espera tomando uma cerveja no balcão do bar. A qualquer momento ela vai surgir, cercada de amigos. E ela vai circular por entre as mesas do bar, e vai tomar uma taça de vinho, e vai sorrir, e vai olhar para todos sem ver ninguém. Porque ele sabe que ela nunca vê ninguém. Ele lê o que ela escreve. O sangue correndo pelas palavras e o coração pulsando aflito nas entrelinhas. Por trás dos sorrisos, uma alma atormentada. Angústia. A qualquer momento ela vai surgir e ele vai sentir o que ela sente. Solidão. Mas ele não tem coragem de se aproximar. Então, como sempre, ele espera tomando uma cerveja no balcão do bar.
Um dia ela vai saber que ele também tem a alma atormentada de tanto esperar que o olhar dela chegue para ficar.


Kiss, FS #8, Andy Warhol. Imagem de Doubletake Gallery

If I could stay, then the night would give you up.
Stay, and the day would keep its trust.
Stay with the demons you drowned.
Stay with the spirit I found.
Stay, and the night would be enough.

U2, Stay (Far away, so close!)

 
domingo, junho 08, 2003
  Série 12 de Junho
Depois de tanto tempo separados, eles se reencontraram naquela festa especial de Dia dos Namorados. É claro que o reencontro seria nessa festa, ela pensou. A vida sempre gostou de brincar com ela. Por que achar que dessa vez seria diferente? Então estavam ali, frente à frente outra vez, enquanto Sheena Easton e Kenny Rogers cantavam we’ve got tonight, who needs tomorrow. Sim, meu amor. Essa noite é nossa e ninguém precisa do amanhã. E no fundo tu sabes o quanto eu me sinto sozinha sem ti. Still here we are, both of us lonely. Os olhos dele, uma prisão. Hipnose. Dançaram como há muito não faziam. Ela sentiu que ele se rendia e se entregou também. Foram levados pelo momento e pela música. Beijos ardentes de um amor impossível. Por que mesmo impossível? A única resposta para essa pergunta era porque, em seu íntimo, ela sentia, ela sabia ser impossível. Nenhuma explicação melhor do que essa. E quem precisa do amanhã? Pra que pensar no futuro se agora estou com ele, se agora ele me ama? Apaga a luz, pega a minha mão e me leva contigo até o infinito. Me leva pra onde não existe realidade, onde não existe tempo. Na cama ao lado dele, coberta pelas verdades que surgem quando o momento passa e o amanhã chega, ela sabia que estava na hora de ir. Ele não tinha mudado, ele não iria mudar. Amor impossível, agora ela lembrava o porquê.

I spend so much time
Believing all the lies
To keep the dream alive
Now it makes me sad
It makes me mad at truth
For loving what was you
Les yeux sans visage eyes without a face
Les yeux sans visage eyes without a face
Les yeux sans visage eyes without a face
Got no human grace your eyes without a face.

(Eyes without a face, Billy Idol)

Olhos, Joice Giacomoni

A quem, sem saber, inspirou esse texto. Ao Hardarik, pela leitura prévia e atenta e por todas as palavras, as de hoje e as de sempre. 
quinta-feira, junho 05, 2003
  Série 12 de Junho
Cinco anos de distância
Amor de Internet e telefone
de mala, passagem e passaporte
Amor sem fronteiras e sem porto seguro
Ilimitado amor de labirinto
Cinco anos de chegadas e partidas
Cinco anos em que muito partiste
meu coração partido!


Imagem obtida em juegos de que

Essa história de (des)amor também inspirou uma música, gravada no CD Estação, de Jerônimo Jardim, e com versão ao vivo no próximo CD, ainda sem data prevista de lançamento.

Estação
(Jerônimo Jardim)

Malas prontas postas na estação
Lâminas ferindo o coração
Sonhos que aqui estão
Sonhos que se vão
Navegando noutra direção.

Planos sempre podem se encontrar
Transversais, sinais, metas, metais
Portas de sair
Portas de chegar
Pontos, plagas, nos bares, nos cais

Qual dos dois é o teu olhar
Cor de céu ou cor de mar?
Qual o adeus do teu olhar
De jamais ou de voltar?


Thaís, Jerônimo e Flávio. Para quem ainda não sabe: Jerônimo Jardim - compositor, cantor e escritor gaúcho - é meu pai. Essa foto foi tirada pela Penélope na primeira noite de gravação do CD ao vivo. 
terça-feira, junho 03, 2003
  Série 12 de Junho
Terminei com ele cantando DeFalla:
Não me mande flores
Pare de bater no interfone
Eu não preciso do seu amor

Três meses depois, um bilhete dele acompanha o enorme buquê que o funcionário da floricultura me entrega.
Te mando flores
Apesar de não bater mais no teu interfone
Será que não precisas do meu amor?

Eu nunca respondi. As flores murcharam. Ele casou com outra e parece que são felizes.
"Ama a quem te ama". Ah, se fosse fácil assim.


Imagem de Van Gogh
 
TEXTO DA SEMANA
Um texto, uma poesia, a letra de uma música. Os outros me marcam com palavras. Palavras registradas. Aqui.

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